Há dias assim

Estava sentada na beira do passeio no espaço entre dois carros. A posição, ironicamente igual à do ‘pensador’, cotovelos apoiados nos joelhos com as mãos no rosto sujo. O corpo nu, completamente nu e nem o menor sinal de estar consciente disso.
O rosto tinha o olhar vazio de quem não espera mais da vida. Não um olhar louco. Um olhar triste e vazio de quem não pode ter menos. Nem um resto de pano cobria o corpo despido e maltratado desta mulher. Jovem ainda, sentada no passeio de uma das ruas mais movimentadas de Luanda.
As pessoas passavam indiferentes, afastando-se ligeiramente. Do interior dos seus carros de dezenas de milhar de dólares, parados na interminável fila de trânsito que é Luanda durante o dia, alguns deitavam olhares reprovadores.
Pareceu que só eu consegui ver um ser humano ali parado, no mais baixo patamar da pobreza, aquele em que um ser humano tem apenas o seu corpo. Nem um único pertence. Mas até eu, embora incapaz de esquecer o olhar devastadoramente vazio, me afastei, empurrado pelo pudor do corpo despido, sujo, ossudo, de quem não recebe nada da vida há muito.
A experiência Angolana tem mudado a minha perspectiva da vida. Desde logo, mudei todo o meu sistema de valores e sou agora menos – muito menos – ligado a bens materiais; por outro lado, criei uma capa que me permite conviver com a pobreza no dia a dia, sem deixar de dormir com isso, mas, quando esta tarde decidi caminhar os cerca de 2km desde a baixa ao Kinaxixe, não estava preparado para este murro no estômago.
A natureza humana consegue coisas muito desumanas.
5 Comments:
Meu primo,
Arrepiei-me ao ler-te...
Também experimentei uma visão nova este fim de semana: esplanada do antigo cinema Miramar... Basta olhar para além das paisagens, lindas muitas vezes... Olhar para baixo e ver musseques desconhecidos, que arrepiam mesmo...
Sorte nossa ter-mos nascido onde nascemos...
Beijo grande com sol.
Prima Sylvie
Rui...só mostra que mesmo com a cortina de fumo (muito necessária para quem trabalha nesses meios) és humano e a realidade não te é indiferente...
Um grande abraço
LA
Amigo... :(
Palavras para quê!?
Grande beijo
Comecei a ler convencida de que finalmente tinhas voltado aos contos... Afinal era a sério ='(
Olá Rui,
Passei estas duas semanas em Luanda, e a visão que tão bem descreves é a dura realidade de milhões de pessoas que vivem nesse grande musseque que é Luanda.
O meu futuro próximo passa por esse grande musseque, espero vir a ter a capacidade de criar essa tal cortina de fumo, para que eu própria, ainda que de forma muito diferente possa nele "sobreviver".
PB
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